Uma carta de SARS-Cov-2

Olá Paula,

Já que você não nos permite um contato mais íntimo, sou obrigad* a lhe responder por carta. Suas inúmeras perguntas me envaidecem, pela importância que me atribuem.

Quanto à primeira pergunta, sinto decepcioná-la. Não tenho o menor interesse em lhe responder de onde eu venho.

O primeiro motivo é meu interesse na minha própria sobrevivência. Contar-lhe sobre minhas origens poderia significar o meu fim.

O segundo motivo é que ando me divertindo à beça com as inúmeras respostas que vocês humanos têm elaborado para essa pergunta.
Eu estou em dúvida sobre a minha favorita. Fico entre aquela que me caracteriza como um instrumento divino de ensinamento (adoro essa interpretação de Deus de vocês, que ora é amor e ora é um pai rancoroso que educa pelo sofrimento, ao mesmo tempo que diz que vocês é que causaram o sofrimento); e aquela que diz que eu sou uma arma biológica chinesa (vocês percebem esse padrão, de colocar a culpa nos outros, de preferência bem distantes?).

Sobre sua pergunta triste e inconformada sobre eu estar matando os mais pobres e pretos, seus questionamentos sobre minha falta de sensibilidade, e sobre suas indicações de personagens alternativos a serem mortos por mim, seguem alguns comentários.
É uma decepção, que você, com tanto conhecimento acumulado, não saiba as respostas. Afinal, sou apenas um vírus.
Não tenho coração — nem cérebro, nem respiro e, para alguns, nem sou um ser vivo.

Apenas existo, e minhas instâncias fazem o que estiver ao alcance para continuarem existindo.
Literalmente, ao nosso alcance, que é de aproximadamente um metro e meio.
Talvez um pouco mais se você não lava suas mãos e não pára de coçar o nariz, ou se é uma criança ainda sem noções de higiene.

Mas vocês são são seres com coração, cérebro e que não hesitam em respirar perto daqueles que dizem amar, que dizem serem seus amigos.
Para vocês, os abraços vêm sendo justificados, mesmo quando eles podem ser mortais.
Para vocês, seis meses sem estar próximo de alguém, pode ser uma eternidade.
Vocês, acima de tudo, são seres sociais.
Eu entendo isso.
É assim que sobrevivem.
Mas acho curioso como a sociabilidade de vocês é seletiva e egoísta.
Em resumo Paula, não atribua a mim uma culpa que não é minha (um ser distante e invisível, novamente!).
Os pobres e pretos morrem mais porque vocês não têm interesse em salvá-los mais.

Sobre seu questionamento de quando vou embora, minha resposta é assertiva: nunca mais. Não sou um ser racional, mas tenho um plano codificado no meu hardware e ele é de longo prazo. A primeira fase foi concluída com sucesso: atingir níveis globais.
Ao entrar em contato com a grande diversidade de humanos, consegui desenvolver novas habilidades. Acho bonitinho quando vocês dizem que tiveram que se adaptar em 2020. Ahhh, garota vocês não sabem o que significa adaptação para um vírus.
As minhas versões 2021 já foram lançadas.

Mas não fique desesperada. Sou realista.
É óbvio que vocês vão começar a ganhar mais batalhas.
As vacinas, não importa qual, têm sido efetivas para me abaterem.
Mas, via de regra, o jogo com vocês tem sido como brincar com a criança pequena do play, que é café-com-leite.
Quando vocês podiam ter virado a mesa de uma vez só, ficaram aí se dividindo, e discutindo as correlações entre vacinas e o aumento da população de jacarés.
Melhor prá mim. Ganho tempo e vou me adaptando à nova realidade aos pouquinhos.
Em resumo Paula, a terceira fase do meu plano está de vento em popa.
Essa história de pandemia não está com nada.
A meta é virar endêmico. Hiperendêmico, se me permitir ser ambicioso.

Espero que essa resposta não seja uma grande decepção para você.
Lembre-se, eu sou incapaz de ter maldade.
Eu só quero sobreviver, e sou eficiente nisso.
Por isso mesmo, é totalmente desnecessário me agradecer por não matar crianças.
Novamente, não tenho coração, apenas não desenvolvi essa habilidade que, no fundo, é interessante.
Talvez se eu matasse crianças, vocês se uniriam de verdade, e aí sim poderia ser o meu fim.
Então eu vou matando os idosos, os pobres, os pretos, e outros desinteressantes de outros lugares.
Chamo menos atenção e “vou sobrevivendo sem um arranhão, com a caridade de quem me detesta”.

Mas já que desenvolvemos essa relação, eu vou te dar uma dica. Fica de olho no Morbillivirus.
Ess* cara é primitiv* e a falta de organização de vocês está dando espaço para essa loucura.
Como eu disse, não me importo. Só estou aqui fazendo o meu papel de sobreviver.

Continuamos nos vendo por aí.
Apreciaria imensamente um contato mais íntimo, mas aprecio ainda mais sua desenvoltura em me driblar até agora.
Talvez a vacina chegue até você antes de mim. Tic-Tac-Tic-Tac.

Um cordial abraço,

SARS-Cov-2

A prayer to Humanity

This is a cry for help from someone who no longer hopes to be heard. Like Dantès in the “If” prison, I’ve already passed through all the despair phases and this is just a prayer to Humanity and not to God.

Yesterday, the Brazilian president made an announcement suggesting that medication trials for COVID-19, such as hydroxychloroquine, are not a question of seeking scientific truths and being responsible with human lives, but “lack of courage” of doctors that don’t offer it as an option to their patients.

Yesterday’s announcement complemented previous ones in which Brazilian president classified COVID-19 as a “little flu”, in which he defended isolation only for the elderly. The announcement closed a week in which he systematically doubted the recommendations of his own Ministry of Health team.

Once more, he used excerpts from Tedros Ghebreyesus speeches (World Health Organization) to give some credit to his speech, trying to convince people that Brazil should be different from the rest of the world since each country has its particularities.

Until now, Brazilian people didn’t hear from his president: Stay Home.

Maybe some will ask: Why Brazilian people don’t show their voice?

Brazilian population is too big and too diverse to fit in one answer. But I have hypotheses.

Part of the population simply doesn’t understand the whole problem. They don’t read English, meaning that they don’t have access to external information. They only access information through low-speed connections in mobile phones, meaning that their main information source is composed of WhatsApp sharing, Facebook and Twitter posts. They are submitted to an information war. Even people who want to seek correct information are often embarrassed by their peers with a flood of poor quality information that comes in the opposite direction. Due to the confusion that arises, people freeze.

The other part is simply exhausted. The recent actions of our president were not the first that can be classified as nonsense and incoherent. For them, yesterday’s announcement is just one more battle in a war that is becoming too long and that, now, is really killing innocent people.

No hope. No hope for thousands of people that will certainly die in the following weeks.

I would like to apologize if this message finds you at a time when you needed courage and I am only contributing to your sadness.

I started by saying that this message was a cry for help, but I sincerely apologize if I am giving you information for which you will feel responsible but that you think you have very little to do. I ask you not to feel guilty about anything.

If on my side the darkness is too strong, I just ask you to increase the brightness of the light on your side of the planet, until, eventually, some rays of hope illuminate us again.